As notícias abrem com números e percentagens e falam numa guerra comercial.
As outras guerras ficaram enfiadas nas últimas páginas, fora das notícias de abertura.
E por entre uns números abstratos e outros demasiado concretos, ficam, caídas, as pessoas que tentam sobreviver no meio de tudo isto.
O par de histórias que hoje junto, tem como protagonista também dois pares: mãe e filha e pai e filho. E os dois livros lembram dois assuntos do momento, ou antes, duas pessoas do momento: as que ficam sem casa e as que ficam sem nada.
A pobreza e a habitação são também notícia, ou deviam ser pelo escândalo que são, mas, tal como nas outras guerras, os números dizem pouco em relação ao real problema. E às crianças não dizem mesmo nada.
Mas os miúdos vêm a pessoa que pede nas escadas no metro ou à porta da pastelaria. Como vê a menina deste Sem desvios, todos os dias, a caminho da escola, com a mãe.
E os miúdos conhecem — ou são, como o Leo e o seu pai, — quem tem de mudar de casa, porque as rendas subiram ou porque vão fazer uma construção mais rentável do que A casa azul.
Lembro-me de umas meninas que vinham bater à porta de casa dos meus pais para tentar vender peixe. A minha mãe não lhes comprava peixe, mas dava-lhes o que podia. Como a menina do Sem desvio, lembro-me de sentir pena delas, mas também um enorme embaraço: por ter aquela casa, aquela mãe, por elas existirem, assim.
As crianças têm uma sensibilidade apurada que deve ser acarinhada, preservada, educada e não embrutecida. É certo que têm de ser protegidas, mas principalmente, tem de ser ajudadas a perceber que as injustiças existem e que temos de lutar, como podemos, contra elas, sem nos deixarmos desmanchar.
É o que a mãe da menina lhe tenta ensinar, docemente.
A perceção das crianças é especial e muitas vezes desconcertante.
Quando mudámos de casa (e os rapazes já não eram assim tão pequenos), tive de estar vários dias a responder a perguntas repetidas sobre o que iria connosco para a casa nova. Não queriam mudar (mesmo que no nosso caso fosse para termos mais espaço), mas, principalmente, não queriam deixar para trás coisas fundamentais para as suas brincadeiras. O tapete, por exemplo, campo de futebol dos playmobil: "E o tapete, vai?", "Vai"; "E o chão, vai?", "Não, o chão não vai." E a parede, vai?", "E os playmobil?". Tudo no mesmo saco.
Para as crianças "a casa" é de facto um universo, em que há pouca distinção entre o que é arquitetura e construção, decoração e recheio. Os pertences e a casa, as pessoas que nela vivem e o que lá fazem, enleiam-se num universo que, para elas não é possível dividir em caixas e caixotes. Tal como não concebem — e ainda bem — que haja alguém sem casa ou que um bebé não tenha ao menos um boneco.
Leo resolve o seu desgosto apropriando-se da casa nova através da dança e da pintura, através da memória. A menina resolve o buraco que sente no peito por aquele bebé na rua, prescindindo e oferecendo-lhe a sua antiga boneca.
Sem desvios é contido nas palavras, nas cores, nos traços, na ausência de expressões e de nomes. É um reflexo da menina-protagonista.
A casa azul é uma explosão de cores e de técnicas, de páginas cheias, de ruído, movimento e revolta. Um retrato de Leo.
Nos dois livros, a revolta e as emoções à flor da pele, como e onde devem estar, para que não baixemos os braços perante as injustiças, frementes e com pele de galinha.
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Orfeu Mini, 2025
Stéphanie Demasse-Pottier texto, Tom Haugomat ilustrações
isbn 9789899225060
Orfeu Mini, 2025
Phoebe Wahl
isbn 9799899225107
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