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2.5.24

Verdadeiro de verdade

A Páscoa dura 50 dias, por isso abro aqui hoje, ainda em tempo pascal, o livro que tinha escolhido para essa altura.
Tenho alguma dificuldade em ligar coelhos e Páscoa, mas o coelho está de facto associado ao tempo pascal, (porque esta Festa está sobre a festa da primavera, como quase todas as celebrações cristãs) por ser símbolo de fertilidade.
Trago então à mostra um coelho, nada instagramável, mas muitíssimo contemporâneo — apesar da sua provecta idade de 102 anos.
Esta história é uma espécie de Toy story avant la lettre (em que os brinquedos são substituídos por outros mais reluzentes), com uma pitada de Pinóquio (em que os brinquedos querem ser verdadeiros, como gente).
No texto que abre esta edição, fiel ao original, o editor, numa bonita reflexão sobre a contemporaneidade desta fábula, explica: "Num mundo dominado pelo artificialismo das aparências e pela vertigem das redes sociais, uma história comovente sobre a coragem de ser verdadeiro podia soar anacrónica. No entanto, pelo contrário, ela confronta-nos com os paradoxos do nosso tempo: cada vez mais individualistas, vamos abdicando da nossa individualidade; cada vez mais ligados virtualmente, na realidade vamos agravando o nosso isolamento; cada vez mais submergidos em informação, vamos aprofundando a nossa ignorância."
Um menino recebe um coelho de peluche pelo Natal. Depois de duas horas (uma verdadeira eternidade na infância) de intensa brincadeira, o coelho é substituído por um brinquedo mecânico, daqueles que "cheios de ideias modernas, fingem ser verdadeiros". Mais ou menos mecânica ou mais ou menos eletrónica, a infância ainda é o que era.
A ingenuidade do coelho protagonista leva-o a nem sequer reconhecer diferença entre si e um coelho verdadeiro. Porque final, o que é ser verdadeiro? "Isso magoa?" Inevitavelmente, caro coelho.

A fábula mete brinquedos que falam uns com os outros, sábios e prontos a ajudar. Mete fadas e coelhos verdadeiros que saltam pelo bosque. E mete muito respeito pela infância como um lugar fremente, na sua capacidade de tudo poder imaginar e de se afastar a passos largos de tudo o que cheira a condescendente. 
Traz a lume questões importantes de forma elegante, imaginativa e respeitosa pelo lugar frágil que é a infância. Porque não lhes responde com dogmas, mas incita ao pensamento. Porque nos fala da rebeldia necessária a todos os que querem fazer mais, melhor e diferente nesta passagem pela vida. Porque nos mostra o que é realmente ser verdadeiro de verdade.
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O coelho de peluche (ou como os brinquedos se tornam verdadeiros)
Travesso, 2022
Margery Williams texto, William Nicholson ilustrações
isbn 9789898881465

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