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8.9.22

me, myself and i

Há mil anos atrás o B, no banco de trás do carro, ia a falar baixinho na direção da janela. Quando lhe perguntei com quem estava a falar, respondeu que falava com o seu amigo invisível.
A minha sobrinha T, 5, inventa canções que parecem de facto existir. Mas quando chegámos à última página do João Timoneiro, perguntou pelo Tim. Embora adore jogos de letras, para ela o Tim não é o início da palavra Timoneiro, não é um amigo imaginário, não é um alter ego, não é tudo-o-que-o-João-não-é. Não. Tim é o irmão do João e estranhamente não está no quarto na última página.
Aliás, perguntava ela, como podem ser aqueles livros todos espalhados pelo quarto do João? A T tem mais três irmãos.
Mas na manhã seguinte, preferiu não ir apanhar framboesas para ficar a ler o livro. Ainda não lê tudo, mas já lê muita coisa. E, principalmente, quer muito ler, o que é meio caminho andado para o salto final.
Quando desci com aquelas pérolas avermelhadas nas mãos, veio dizer-me que afinal ainda tinha encontrado mais livros na prateleira de cima do quarto do miúdo, mas que talvez o Tim só existisse na imaginação do João. Talvez.
A noite é boa conselheira e ler é crescer, ler é conhecer. Ler é aceitar outras possibilidades para além das que conhecemos.
Todos temos uma sombra (como o Peter Pan) ou um amigo imaginário. Ou simplesmente andamos toda a vida à procura de quem somos porque somos muitos.
Quem é mãe ou pai conhece particularmente bem a sensação de perda de personalidade. Não só porque de repente perdemos o nome para sermos o pai ou a mãe deste ou daquele, mas principalmente porque no turbilhão dos dias que se transformam em anos, alteramos, por vezes radicalmente, a maneira de ser.  Ou talvez não se altere nada, apenas se transforme e cresça, como sempre aconteceu, só que deixámos de ter tempo para nos darmos conta disso. E um dia acordamos perdidos.
Amanhã fazemos 22 anos de casados e deu-me para tentar perceber onde anda a miúda do ano 2000. Ou a de 1996. Se sou o João ou o Tim ou um gigante barco de papel.
Seja a pequena T que acordou mais crescida ou o B que chegou à maioridade ou o T que se procura na música ou R que vai começar a andar sozinho pela cidade — ou eu mesma—, tudo cresce e muda.
E é fundamental que haja uma última página onde estamos sozinhos no mundo, como o João, sem palavras, sem o timoneiro de serviço, para nos irmos encontrando no que somos e seguirmos na aventura como João ou Tim ou João Timoneiro.
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João Timoneiro
Orfeu Mini, 2018
Madalena Moniz
isbn 9789898868312

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