Um dia destes, depois de dar uma aula, fui receber uma aula. Uma masterclass, chamaram-lhe — e foi mesmo uma aula de mestre: uma luminosa aula sobre a luz.
António Jorge Gonçalves decidiu um dia desenhar sobre folhas pretas, e o lápis branco foi, diz, a opção óbvia para o fazer.
Desenhou durante a pandemia, a partir do 2º confinamento, e por mais que tenha sido inconsciente, este álbum ilustrado (a que faltam as palavras que cada um lá quiser deixar, porque cada um terá a sua história para contar), é um perfeito retrato do cidadão na cidade vazia que todos experimentámos ser recentemente.
O homem que procura vida nas ruas desertas, nas esquinas e escadas de Lisboa, onde as ruas não têm nome, porque não precisam dele para nada. Não precisam de nome porque são imediatamente reconhecíveis, tal é o incrível trabalho de retrato-síntese que existe em cada desenho, em cada dupla página mal iluminada, perfeitamente iluminada.
Tal como as ruas, também as pessoas raramente têm rosto: ou porque estão na penumbra ou porque têm uma mão ou uma máscara à frente. Cada uma daquelas pessoas é aquela pessoa em concreto, ao mesmo tempo que representa, no seu anonimato, todas as pessoas que se tornaram preciosas em cada saída à rua a que nos atrevemos.
Saímos primeiro só para o supermercado, mas depois inventámos outras desculpas ou necessidades para poder sair à rua, ver mundo e ver gente, ou outra gente.
A seguir, precisámos de esticar as pernas e os olhos perto de qualquer coisa que cheirasse remotamente a natureza. E, dentro dos nossos auto-transportes, percorremos estradas até poder estar no mundo, sem o mundo, tentando reencontrar algum bocadinho de sentido no meio da distopia em que nos vimos metidos.
O livro começa em movimento, exatamente com uma saída, uma viagem ou um regresso a casa: um conjunto de imagens antes do genérico do filme. Só então chegamos à cidade e ao silêncio que cada par de páginas nos oferece. Mas não se trata de um silêncio mudo, este que mostra interiores e exteriores, pormenores e perspetivas abertas.
Acabei de ler os livros de Erling Kagge, um explorador norueguês que foi a primeira pessoa a ter conseguido atingir os três polos: o Polo Norte, o Polo Sul e o pico do Evereste. O Silêncio na Era do Ruído e A Arte de Caminhar são também pequenos livros de capa negra, se nos desembaraçarmos das sobrecapas supostamente mais chamativas. No interior, em vez de traços brancos sobre folhas escuras são letras pretas organizadas sobre um fundo branco que constroem a linha da narrativa, também ela em quadros, em fragmentos de pensamento.
O Silêncio na Era do Ruído e A Arte de Caminhar seriam dois títulos possíveis para este Desenhar do escuro. (Reparem como não é desenhar no escuro, mas do escuro: não como alguém que está às escuras, mas antes como alguém que espreita a luz.)
Também neles se encontram as reflexões de alguém que caminha no silêncio, de alguém que procura o mundo na ausência dele, de alguém que procura a quietude através do movimento, de alguém que regista aquilo que encontra dentro de si.
A certa altura, encontramos neste álbum o que me parece ser um autorretrato. A maneira como o sol de outono bateu hoje nas páginas enquanto o folheava, tornando o branco prateado, fez-me pensar num espelho. Um espelho que reflete quem reflete, fazendo-nos refletir.
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Edição de autor, 2021
António Jorge Gonçalves
isbn 8789893322703
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