É muito bom inventar tradições. Parece um contra-senso, mas a verdade é que elas começam um dia porque alguém ou um grupo de pessoas assim o decide. E a mim parece-me que a família é o grupo perfeito para começar tradições.
As novas tradições são particularmente importantes à medida que os miúdos crescem. Há coisas que acontecem numa nova família, naturalmente, e que de repente deixam de acontecer porque os miúdos cresceram. E, quando temos tempo para pensar nisso, sentimos uma perda. E uma certa nostalgia.
Porque há um antes e um depois — e por vezes esse depois pode parecer vazio. Por isso, o que há a fazer é pôr mãos à obra e inventar coisas novas e boas.
Este ano falámos sobre isso quando percebemos que o Natal teria de ser diferente. Expliquei-lhes que o meu Natal não tinha sido sempre assim, como era desde sempre o deles. Que as tradições eram construídas pelas pessoas, pelo tempo que passavam juntas e pelo que ia acontecendo.
Há nove meses que tínhamos isto combinado, por isso, dia 2 de fevereiro, fizemos pizza night e vimos o Groundhog Day, ou O feitiço do tempo, em português. E foi um serão e pêras. Outra vez.
No primeiro confinamento, por óbvias razões claustrofóbicas de tempo e espaço que estávamos a sentir, lembrámo-nos de mostrar esta perolazinha da filmografia dos anos 90, aos miúdos. E, quando vimos que o famoso dia repetido vezes sem conta nesta história é o dia 2 de fevereiro, combinámos que todos os dias 2 de fevereiro teríamos de ver o filme. Outra vez. Como no filme, em que o mesmo dia se repete em loop, também nós repetiríamos esta nova tradição todos os anos.
Por mais absurdas ou até kafkianas que sejam, é mesmo importante que se inventem tradições, costumes, em família. Há um sentido de história comum que se constrói e uma ligação que permanece, mesmo quando outras coisas vão desaparecendo. Há um antes, um depois e um belíssimo durante.
Agora o tempo parece congelado, ao mesmo tempo que passa a correr. Um pouco como neste livro.
Este Antes Depois é um álbum silencioso que diz muito sobre o tempo. Há páginas em que ficamos surpreendidos com a relação ou a ordem em que aparece o "antes" e o "depois".
Como no Saisons, há páginas que denunciam as que vêm depois, outras que completam o que veio sendo demonstrado, outras que surpreendem na sequência em que surgem.
Conseguimos encontrar pequenas narrativas e relações de causa e consequência, mas também ligações que parecem vindas do típico jogo de associação de palavras. E surpresas.
Há um lado de hiper-realismo nas ilustrações que as torna muito puras, no sentido em que o desenho atinge o máximo de simplificação possível, sem que, por isso, se tornem frias.
Há zooms aproximados e largas panorâmicas que nos movimentam num rompante entre escalas.
Neste livro sente-se também uma imensa ausência. Não só pelas características das ilustrações, mas também porque a presença humana é rara. E quando surge, é sempre representada por pessoas sozinhas. Só alguns animais aparecem em grupo, e mesmo esses, são raros.
Talvez por isso pareça tanto um álbum ilustrado sobre este tempo (que não é o antes que conhecíamos, nem o depois que não sabemos bem como será, mas um eterno durante).
Ao folheá-lo hoje, pareceu-me um álbum de recordações sobre o mundo. Para que, o nosso canto, não nos esqueçamos de como é que as coisas funcionam, como se relacionam.
De como tudo se passava antes e de como se poderá passar depois.
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Gatafunho, 2015
Anne-Margot Ramstein&Matthias Aregui
isbn 9789899929661
Que beleza!! Obrigada por fazeres esta visita guiada maravilhosa.
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ResponderEliminarOra essa!
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