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23.2.21

No princípio era a água

No sábado houve um dilúvio em todo o país. Água, água e mais água.
Na quinta corre água, água e mais água. Dizem que rio galgou as margens e cobre agora a ecovia e as tabuletas, por onde passamos no verão. Por qualquer caminho que se faça ouve-se o som da água: contínuo, vigoroso, inicial.
A gota de água um livro de uma editora portuguesa sediada em Barcelona. É uma reflexão, um pensamento construído a partir da metáfora da gota de água.
Inês Castel-Branco, a editora e autora deste livro, presta a sua homenagem a Raimon Panikkar, um homem que nasceu entre religiões e que as aprofundou através de um pensamento multicultural — "I left Europe [for India] as a Christian, I discovered I was a Hindu and returned as a Buddhist without ever having ceased to be Christian" — e que muito refletiu a propósito desta metáfora.
Que beleza: pensar na gota de água e na água da gota. Não é só — sem principalmente — um jogo de palavras. É um jogo de símbolos e significados muito ricos, mas aqui fáceis de entender e apreender.
As ilustrações deste A gota de água respiram a riqueza e a serenidade desta reflexão, o modo como de uma forma simples, mas nada simplista, acompanhamos as várias existências da água, os seus poderes e características. O modo como, "ao contrário das plantas, dos animais ou das pessoas, a água nunca morre." A água como sinónimo de vida, mas também de morte.
Entrámos numa quarentena muito específica: a Quaresma; um tempo de caminhada e de renovação, de morte e de vida.
É aliás de vida e de morte o que aqui se trata. Acompanhando uma gota e a sua água e comparando-a com uma pessoa, vemos o destino possível de uma gota ao cair na vastidão do mar: quando cai, a gota desfaz-se, morre; mas a água da gota permanece. Sendo sempre água, continua a sua existência.
Mas também de uma lição de cultura, no modo como são apresentadas a visão ocidental e oriental de tudo isto, visões entre as quais Raimon Panikkar viveu e pensou. Se no Ocidente nos detemos na gota de água, na sua individualidade e característica únicas, no Oriente focamo-nos na água da gota que permanece e pertence a um todo em constante movimento.
A água é sempre água, mas também pode ser muito diferente entre si: a saber a cano ou a terra, cristalina ou lamacenta, fonte de vida ou causa de morte.
No final do livro, o Guia de leitura nada tem de didático-explicadinho, mas é um texto informativo e aprofundado, o que faz com que este seja um livro excecional para uma casa de família, onde convivem várias idades.
Não é um livro infantil. É um livro de pensamento, de sabedoria, de reflexão que pode rodar por todos, como a água, no seu ciclo infinito.
Hoje, estivemos a atirar pedras para o tanque e a ver os círculos infinitos que o impacto faz. E a pensar na vida.
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A gota de água
Akiara Books, 2018
Inês Castel-Branco (segundo Raimon Panikkar)
isbn 9788417440053

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