Ao longo da História, as crianças têm sido consideradas entre adultos em ponto pequeno e selvagens. A infância é um lugar único, como todos os lugares de crescimento, mas primordial e fundamental no estabelecimento dos alicerces de cada pessoa.
Tempos houve em que não havia literatura para a infância e, muito menos, álbuns ilustrados.
Andei a aprender um pouco mais sobre isso com a Anna Castagnoli e tudo o que aqui conto aprendi com ela. Treinei o meu italiano e descobri este livro e as suas incríveis e vanguardistas premissas de teoria da educação, que nos deviam hoje envergonhar.
Anna diz, com graça, que o livro tem só 400 anos e que isso são apenas quatro gerações — logo não muito tempo para a alteração de mentalidades e paradigmas. Ainda assim...
Orbis Sensualius Pictus é um livro de 1658, pensado e elaborado por Comenius (natural da antiga república checa), um pedagogo, teólogo e filósofo protestante que resolveu meter mãos à obra na criação de um livro que ajudasse as crianças a aprenderem a ler. As gravuras são de Paulo Kreutzberger.
Orbis Sensualius Pictus (à letra "O mundo visível em imagens") é um livro bilingue que servia para ensinar alemão e latim às crianças. Neste sentido é um livro didático. A grande modernidade aqui, para além de este ser uma pequena enciclopédia avant la lettre (por ser uma pequena enciclopédia que aparece 200 anos antes da primeira grande enciclopédia), são os pressupostos pedagógicos sobre os quais assenta.
Antes deste Orbis, os livros que existiam para ajudar as crianças a aprenderem a ler construíam-se sobre pouca ou nenhuma pedagogia. Mas Comenius, na vanguarda das teorias da educação, defendia, há quatrocentos anos, o papel da família na educação da criança, a sensibilidade do professor em relação ao aluno, a ideia lúdica da educação (sem castigos, nem ameaças) e o valor de um ensino universal acessível a todos, sem distinção.
Comenius faz o impensável na altura: associa imagens a conceitos e cria o primeiro álbum ilustrado para crianças.
Parte do princípio, pela sua experiência, de que as crianças estão mais despertas e sensíveis para o que conhecem, para o existe à sua volta e podem tocar e que, por isso, a aprendizagem deve ser feita por fases, degraus que se vão subindo, do que lhes é particular e familiar, para o geral e desconhecido.
Depois dos objetos do quotidiano da casa e das coisas que existem em seu redor, Comenius apresenta os mistérios de um mundo mais alargado, da geografia à astronomia, chegando finalmente a conceitos já muito abstratos, como as virtudes humanas. As crianças, acredita, devem aprender um pouco de tudo, "tudo o que Deus criou". Um livro de estudos gerais. Comenius é, por isso, verdadeiramente, o pai de todos O meu primeiro dicionário e de todas as A minha primeira Enciclopédia que proliferam nas nossas estantes.
Antes das páginas onde a aprendizagem surge por incrementação, Comenius começa por organizar um alfabeto totalmente radical: pega em animais — que as crianças conhecem e gostam — mas, em vez de associar os fonemas aos nomes dos animais, associa-os aos sons que os animais fazem!
É certo que, na grande disseminação que este livro teve na Europa do século XVII, (um verdadeiro blockbuster internacional!) as traduções necessárias às adaptações para cada país tiveram grande dificuldade em seguir esta lógica de associar o som do animal ao fonema e este rasgo criativo acabou por não ter seguimento.
A última grande novidade na pedagogia de Comenius, e a que me é mais cara, é a educação pelo desenho — e pelo desenho de observação. Enquanto professora — e até enquanto mãe — insisto na ideia do desenho de observação a partir do real. É difícil, claro, mas é uma lição como nenhuma outra.
O pedagogo não ambicionava formar artistas, mas sabia que nada melhor do que um olhar atento e uma tentativa de registo para que os objetos nunca mais nos saiam da cabeça. Através da observação e registo dos objetos, as crianças conseguiriam chegar realmente a compreender como eram constituídos, como funcionavam e, apreender de facto esse conhecimento.
Depois do século XIX a educação pelo desenho incentivada por Comenius passou de moda e acabou por desaparecer. Perdeu-se em tal medida que, ligando-se a isso chegámos aos nossos dias a considerar que, se as crianças são crescidas, já não precisam de imagens. Que pena. E eu que continuo a pensar que um bom álbum ilustrado não tem idade, tem todas as idades.
Os professores são hoje considerados trabalhadores essenciais. Quando digo hoje, não digo contemporaneamente, mas hoje mesmo. A escola fechou e a sociedade panicou.
A escola está a reinventar-se, os professores a usarem toda a sua capacidade criativa para conseguirem ensinar como nunca antes experimentaram.
A escola estava mal, sabemos e tentava reinventar-se. Esta desgraça podia, devia, ser encarada não como um momento a ultrapassar e ao qual sobreviver, mas como uma oportunidade de reinvenção (urgente) na maneira de ensinar e aprender. E não é preciso ir muito longe. Bastam 400 anos.
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Libros del Zorro Rojo, 2017 (1ª edição 1658)
Johannes Amos Comenius texto, Paulo Kreutzberger ilustrações
isbn 9788494773464
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