A consciência cívica é uma coisa que se vai educando e que vai crescendo com o tempo.
Temos imensas gerações e toda uma História para nos ajudar a formar e a educar os nossos miúdos.
Fazemos igual ou a antítese dos nossos pais e avós, consoante tenha corrido connosco, mas temos referências e alternativas por onde escolher. Temos a ajuda da História.
A educação para as tecnologias não começou nos anos 50/60 com aparecimento da TV em Portugal. Ao contrário dos tipos de tecnologias que hoje usamos, a TV era gregária e comunitária. Claro que depressa passou a ser uma voz permanente em muitas casas onde, de manhã à noite, permanecia ligada. Arrisco dizer que, em algumas, ainda permanecerá.
Tenho alergia a isso. Cá em casa não se pergunta posso ver TV?. É uma pergunta sem sentido (ligar a TV sem objetivo específico e, consequentemente sem tempo mais ou menos pré-definido, é passaporte para desligar o cérebro); tal como nenhum dos três, quando acorda, a liga. Pura e simplesmente isso não acontece agora porque nunca foi uma opção antes.
Os mais velhos têm telemóvel, o R não. Temos um carregador coletivo num móvel onde todos pousamos os dispositivos, à chegada a casa. Ninguém os mantém no bolso ou leva para o quarto. Todos os desligam à noite. Quando digo todos, somos todos, mesmo: pais e filhos. A desculpa do despertador foi a última, mas foi resolvida em boa hora.
Não temos emails deles em espelho no nosso; não lhes limitamos tempos de utilização, nem temos Family link; não vamos espreitar a localização, nem inspecionar históricos.
E isso dá imenso trabalho. Porque ao lhes darmos essa liberdade, vai carregada de responsabilidade. Para eles e para nós — que temos de ser muito mais ativos e participativos na sua educação do que se tivéssemos uma app a fazer isso por nós. Não acho mal, só não quero isso para a minha família.
E esta opção não significa uma demissão. Temos que perguntar muitas vezes o que estão a ver, se não estão há tempo demais nos ecrãs naquele dia; temos de lhes dizer que pusemos limites de tempo numa aplicação porque a achamos viciante ou que desligámos as notificações noutra que era demasiado invasiva ou que decidimos apagar aqueloutra que nos estava a fazer mal. Depois temos de lhes sugerir que façam o mesmo.
A seguir temos de repetir que ao serão não se deve estar com ecrãs e lembrar o porquê e que nas boleias é falta de educação ir de nariz enfiado no telemóvel. Temos de ver juntos o "The social dillema", R incluído, e depois falar sobre ele. Várias vezes. Além de dar trabalho, cria conflitos, mas também dá lugar a resolução de conflitos — individuais e coletivos — e a casa também é um lugar para se treinar e educar isso.
Depois temos de perguntar em que aplicações puseram limites e porquê. Temos de lhes perguntar se costumam prevaricar. Temos de lhes dizer que isto também é difícil para nós e que aprender é estar à procura. E depois fazer isto tudo outra vez, vezes em conta.
Finalmente temos de lhes dar a ler o Gosto, logo existo: de discurso leve, mas com um corpo que o sustenta, sem rodeios, nem paternalismos, cheio de factos sobre diferentes assuntos (em cheio para diferentes tipos de miúdos), carregado de perguntas e caminhos para as respostas.
Mais uma vez assistimos aqui a uma reinvenção do Bernardo na ilustração, que ao longo dos anos se vem desmultiplicando em técnicas e abordagens, sem medo de arriscar coisas novas e sem nunca, nesse caminho, perder a sua forte autoria. O ar aparentemente blasé das personagens que povoam este livro encaixa na perfeição com o permanente daa que os adolescentes têm nos olhos e a sair da boca.
Os nossos pais não nos ensinaram a usar telemóvel, nem internet, nem a gerir aplicações e redes. E por isso é normal sentirmo-nos pedidos. Mas, se pensarmos bem, ensinaram-nos a liberdade e a responsabilidade que vem com ela. Ensinaram-nos a ir criando bom senso, a ter cuidado, a ter "conta, peso e medida", a ser radicais naquilo que é importante. Ensinaram-nos a ser educados. Deram-nos as ferramentas e mandaram-nos para o mundo. Não crescemos com localizadores incorporados: simplesmente perguntavam-nos por onde tínhamos andado.
É difícil educar para as tecnologias e para as redes, sim. Mas ninguém disse que era fácil educar.
Domingo vamos às urnas. Só os pais, desta vez. Mas todos, a começar pelo B, estão dentro dos assuntos, dos candidatos e de muito do que está em causa. Assistimos juntos a alguns debates, R incluído, tal como acompanhámos de perto as eleições americanas. Têm um interesse genuíno no assunto porque foram educados para o ter. A consciência cívica destes rapazes está ainda em formação. E para se ir formando tem de ir recebendo informação.
A liberdade vem com muitas responsabilidades, desde logo esta, a da informação de qualidade. De repente o mundo não chega só pela voz dos pais. E mesmo essa é posta em causa, mal desponta a adolescência. Por isso há que ensinar a procurar a informação e a desinformação, a ouvir os dois ou mais lados de uma questão, a ser tolerante e reagir à intolerância, a dar o braço a torcer, a escolher pela própria cabeça e a nunca deixar outros escolher por nós.
A Planeta Tangerina faz vinte anos e os seus livros crescem com os seus leitores e com o mundo. Em boa hora desafiou a jornalista Isabel Meira a pensar, investigar e partilhar isto, como em boa hora fez Um livro para todos os dias, alargando o seu grupo de amigos ao mundo inteiro.
Com vinte anos a Planeta já terá leitores votantes. Aqui em casa ainda faltam dois anos para isso e, entretanto, ainda muito para viver e crescer. Mas com a companhia de livros destes, tenho a certeza de que se tornarão cidadãos de mão cheia.
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Planeta Tangerina, 2020
Isabel Meira texto, Bernardo P. Carvalho ilustrações
isbn 9789898145482
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