Sentimo-nos hoje a viver a 3ª Guerra Mundial e sabemos muito pouco sobre as consequências que estes tempos terão em cada um de nós, os poupados à fúria do bicho. Principalmente nas crianças e nos adolescentes, em plena fase de mudança, descoberta, necessidade de liberdade e de confronto com os pares. Necessidade de sair de casa.
Vivemos umas férias forçadas em que o papel de pai e mãe fica ainda mais difícil: os miúdos estão em férias, mas afinal não é bem assim. Fica difícil ajudá-los a estruturar o tempo que deveria ser menos estruturado, por ser de férias, quando não percebemos bem que tempo é este, nem que tempo vem a seguir e nem por quanto tempo.
As crianças sabem sempre muito mais do que julgamos. Os adolescentes, então, nem se fala. É difícil conseguir perscrutá-los sem sermos demasiadamente intrusivos, numa altura em que precisam tanto de liberdade, mas também de acompanhamento.
Há muita coisa que precisam de processar, cada um à sua maneira — e agora é muito difícil proporcionar o espaço, e mesmo o tempo, para essas diferenças.
Capitão Rosalie é um livro muito bonito e muito duro. Lê-se avidamente, mas não é bem um álbum ilustrado que serve qualquer idade. É antes um conto ilustrado difícil porque não acaba com um final feliz. Valem-nos as ilustrações de Isabelle Arsenault que funcionam como festas suaves.
Rosalie tem 5 anos e meio e a guerra anda por perto. Levou o seu pai — em mais do que um sentido, afinal — e já sabe ler, sem que o professor (que a acolhe antes da idade de escola devida, para a sua mãe poder ir trabalhar) nem a sua mãe se tenham apercebido disso.
É difícil dosear o grau de informação que o R deve ter. Todos os dias pergunta pelos números e há já vários dias que lhe repondo só que são muito altos, outra vez.
Tínhamo-nos como privilegiados e protegidos. Os nossos pais ainda viveram a guerra, nós e os miúdos não. Mas estes miúdos deixaram inevitavelmente de ser uma geração mimada e anestesiada. Não sabemos que geração vai ser, que feridas vai deixar este fechamento. Não sabemos de que maneira o virtual (que antes parecia ser já um gigante tão ameaçador nas suas vidas) vai fazer parte deles. Haverá uma reação de fuga? Ou irão embrenhar-se cada vez mais neste lugares sem corpo?
A curiosidade é uma arma muito forte e saber ler dá acesso a muita coisa. Por vezes até a coisas que não devemos, ou não conseguimos processar sozinhos.
Rosalie precisava de saber o que estava na carta do envelope azul. Nos olhos esquivos da mãe anteviu essa necessidade. À mãe faltava coragem, a Rosalie sobrava curiosidade. E a leitura deu-lhe o acesso àquilo de que tanto precisava para seguir a sua vida.
Que bom que, no final da história, teve o resto de que também precisava avidamente: consolo.
*título roubado à grande Mercè Rodoreda
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Orfeu Negro, 2020
Timothée de Fombelle texto, Isabelle Arsenault ilustração
isbn 9789898868800
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