Mas a maioria das vezes temo que seja para voltar à correria dos programas que implicam demasiadas mensagens e muito pouco tempo para estarmos connosco próprios.
Também me irritei com a espécie de euforia bacoca com que o ano '20 foi enxovalhado em e pelo público, enquanto '21 vinha aclamado como sendo o ano das nossas vidas. Como assim? Haveria alguém realmente enganado sobre a simbólica passagem de ano e a realista continuidade do tempo?
Talvez seja só sintoma da imortal esperança humana e isso é muito bom, de modo que, o que tenho de fazer é parar de me irritar.
O ano '21 está aqui visivelmente mais difícil do que grande parte do anterior. Sabemos mais, para o bem e para mal. E sabemos que este tipo de vida, chamemos-lhe assim, está para durar.
Se há coisa que este tempo poderá trazer é uma verdadeira calma. Parece absurdo, eu sei: os níveis de ansiedade individual e comunitária estão a atingir, como em outros campos, valores terríveis. Mas a sofreguidão pelo "voltar ao que era" pode ser amansada com este tempo extra.
Relembremos três urgências pré-pandemia: a climática, a dos refugiados e a do tempo. Há menos de um ano estes eram os assuntos prementes em cima da mesa. A urgência de saúde pública sobrepôs-se, mas os outros assuntos urgentes não desapareceram do mundo.
Em relação aos dos primeiros dramas, a cada um uma pequena parte: pequenas ações do dia-a-dia e a ida às urnas, por exemplo, poderão fazer a diferença no coletivo. Quanto ao terceiro drama, grandes decisões focadas no que é realmente importante em cada momento, para chegar ao mágico equilíbrio. E que oportunidade nos é dada com neste tempo negro onde poderemos encontrar a brecha que deixará entrar a luz — roubando a imagem ao grande LC.
Andamos de cabeça perdida, andamos de alma perdida.
Neste conto de Olga Tokarczuk (Nobel) e Joanna Concejo (Menção Especial do Bologna Ragazzi Award) — sim, porque as ilustrações também contam — um homem vivia uma vida perfeitamente normal, ou seja, vivia depressa demais, sem dar tempo ao tempo e a si próprio. De tal maneira que um dia acordou sem saber onde estava e qual o seu nome. Uma médica anciã e sábia aconselhou-o a ir pacientemente esperar pela sua alma. Andamos depressa demais, explica-lhe, e as nossas almas não conseguem acompanhar-nos. De modo que andamos por aí, almas sem cabeça, pessoas sem coração.
Tem morrido muita gente e têm morrido muitos anciãos sábios. Oxalá tenhamos a sorte de nos terem deixado as suas almas por aí. Perdem-se as vidas, que não se perca a sabedoria.
Que as possamos cumprimentar, convidá-las a entrar e deixá-las crescer em nós e ganhar cor, como as ilustrações deste conto e as plantas e a barba deste homem que percebeu a tempo a importância do tempo.
....................................................................................................................
Fábula, 2020
Olga Tokarczuk texto, Joanna Concejo ilustração
isbn 9789896689339
Sem comentários:
Enviar um comentário