Na noite passada o R perguntou-me se era normal sentir-se mais triste do que quando era mais novo.
Tínhamos estado a ver filmes de quando eram pequeninos.
O R tem 9 anos.
Entrou para uma escola nova, para um ciclo novo, sem nenhum dos seus amigos que o acompanhavam desde os 2 anos. E de máscara.
Para a semana comemora o seu primeiro aniversário de dois dígitos. Um grande salto simbólico.
Disse-lhe que sim, que era normal, mas que na verdade andava toda a gente mais triste, nestes tempos, e que a alegria era — é! — uma escolha.
Ficámos de conversar mais hoje, e tenho estado a pensar dizer-lhe exatamente o contrário do que lhe disse ontem: na verdade, as alegrias de adolescente, jovem e adulto são tão incríveis e maravilhosas como as da infância— e ele tem essas todas ainda para viver. Cada tempo tem as suas coisas boas e as suas coisas difíceis.
Trocaram-lhe as voltas e acho que se sente por ali, em terra de ninguém, ou na terra de todos, mas meio perdido, como peixe fora de água.
Já não é pequeno e ainda não é grande.
Espera-se dele que: carregue uma mochila que pesa mais que o seu corpo, se levante de noite, tenha muitos professores, muitas disciplinas, muitos livros e muitos espaços para dominar; que depois de um dia na escola ainda venha trabalhar em casa e se vá deitar antes dos irmãos. Que seja bem educado, simpático, atento aos outros. Que faça a cama, ajude a pôr a loiça na máquina, que arrume os talheres da máquina e a roupa dobrada no armário, ao fim de semana. Que seja o melhor que pode ser — como pessoa, como aluno, como amigo, como filho, irmão, neto e primo. Que seja agradecido, ambicioso e compassivo.
Está crescido e ainda é pequeno.
Acho que sente que "foi pelos ares, andou às voltas e às voltas e ficou todo baralhado".
Como este novo mini-micro que a Ana Pessoa escreveu e que a Madalena Matoso ilustrou. E que, depois, mandaram ao ar!
Há uma história, sim, simples. Simples, mas com animais estranhos na forma e no nome — o gnu e o texugo—, e com comida sofisticada: tagliatelli com espargos. A simplicidade aqui não tem nada de fácil: as crianças não são bacocas e detestam ser tratadas como tal — e este livro puxa por elas.
É uma história sobre identidade, amizade e liberdade. Uma história que chega ao fim, a meio do livro, para recomeçar baralhada: no texto, nas ilustrações, na paginação e no lettering. E a fazer sentido, na mesma.
E é uma brincadeira. Só isso. Porque é mesmo preciso brincar, experimentar, baralhar para dar de novo, para dar novo!
É urgente brincar. Nestes tempos sombrios, uma boa rabanada de vento pode bem servir para nos fazer olhar tudo (tudo o que temos agora, porque desta não nos safamos...) de maneira diferente.
Imagino as horas de brincadeira da Ana e da Madalena, de tesoura em punho a atirarem papéis para o ar, entre Bruxelas e Carcavelos, a virar letras, a trocar frases, a girar moinhos de vento. A montar tudo outra vez, de maneira a que, na mesma, o gnu e o texugo se encontrem um ao outro e se encontrem a si próprios.
Costumo ler o blogue da Ana (sim, eu ainda escrevo um blogue e leio blogues de outros resistentes) e gostei de imaginar este livro solar a chegar a Bruxelas e a funcionar como uma luz a acender.
As ilustrações da Madalena voltam a atingir o patamar da pura alegria: metade figurativa, metade abstrata — uma pintura totalmente concreta.
Quando se diz que o álbum ilustrado é o primeiro contacto que uma criança tem, normalmente, com a arte, deve ser isto que se quer dizer.
Concreta arte. Sorte a nossa.
Um pequena pérola, este livrinho, que é muito mais do que parece à primeira vista.
Um dia disseram-me isto, assim, em inglês, there's more to you than meets the eye, na rua do Ouro, na Baixa de Lisboa. Ainda não tínhamos mudado de dígitos nos anos, estaríamos em 1997, mas talvez seja esse o marco do início da minha vida adulta e da muitas alegrias de que se tem vindo a preencher.
Crescer não é fácil: o vento (a vida) manda-nos pelos ares, andamos às voltas e voltas e ficamos todos baralhados. Mas a vida está cheia de histórias e alegrias maravilhosas.
Hei-de dizer isso hoje ao R.
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Planeta Tangerina, 2020
Ana Pessoa texto, Madalena Matoso ilustração
isbn 9789898145529
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