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12.10.20

Fausto, o anti-principezinho

Já quase não mando vir livros de fora: além do mercado de produção nacional estar muitíssimo forte, já cá chega muita coisa, muito boa, muito rapidamente. Mas quando soube que a edição portuguesa deste tinha sido adiada para o ano, não resisti a tê-lo já na mão.

O destino de Fausto parece-me uma fábula contemporânea tão certeira para o tempo que vivemos (e, desta vez, não estou a falar da pandemia), que entrou em todos os sacos que fiz para férias, na ida para a quinta e para a praia, e continua ali na prateleira dos livros a uso, há 4 meses, como uma espécie de mantra a que regresso de vez em quando. 

O nariz empinado deste Fausto lembra-me sempre o o nariz empinado de Trump. As feições deste Fausto não são de todo parecidas com as dele, mas a arrogância e prepotência com que aborda as outras personagens ao longo da história, bem como a cegueira e estupidez das suas ações, são um retrato justíssimo do que se vem passando, há tempo demais, do outro lado do oceano — com as inevitáveis ondas de choque deste lado.

Agora, sou eu a adulta e observo-me de fora, em conversas com os meus miúdos, que comentam, incrédulos, palavras e ações do administrador dos EUA. A pergunta no ar é "como é possível"? E sei que esperam de nós, adultos, uma explicação, uma solução — e não temos, nem uma, nem outra. A possibilidade e as potenciais consequências de uma reeleição ou, pior, de uma não aceitação de derrota, estão escarrapachadas em todo o lado. Mas nem por isso perdem força ou se tornam inverosímeis.

Como foi (e é...) possível ter acontecido tanta coisa terrível na História? Foi possível e continua a ser possível e eu não sei o que dizer aos miúdos. Como adulta sinto-me responsável direta pelo escrever da História contemporânea. E o acumular de loucuras que 2020 vai somando, deixa-me desconcertada e alarmada, principalmente perante eles.

Spoiler: no final Fausto morre. Depois de ter subjugado tudo e todos numa espécie de anti-principezinho que tudo quer e tudo perde — pois quer pela força e não por amor — Fausto cai na sua própria armadilha retórica, que se revela profundamente literal.

Não há uma rosa, mas há uma flor, não há uma raposa, mas há uma ovelha, não há um vulcão mas há uma montanha.

Tudo pela pena do grande e politicamente ativo artista Oliver Jefffers. Jeffers escreveu esta história em 2015, antes de Trump ter sido eleito e ilustrou-a em 2018, mas nada acontece por acaso, digo eu.

Um anti-principezinho, sim: O destino de Fausto é também uma fábula sobre solidão, amizade, amor e perda e aborda diretamente a natureza humana, tal como a do aviador do cachecol amarelo. Mas este anti não quer cativar, mas possuir, não quer gostar, mas mandar. A sua ambição desmedida tem um objetivo obscuro ou talvez seja apenas um objetivo em si.

Não sei dizer se a história acaba mal ou acaba bem; apenas continua, exatamente como antes deste momento que nos é dado ver.

Um álbum ilustrado, ou uma ilustração do mundo e da natureza humana. De parte dela, pelo menos. 

Porque a esperança, essa não se manda borda fora!
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The fate of Fausto
HarperCollinsChildren’sBooks, 2019
Oliver Jeffers
isbn 9780008357917







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