Diz-se muitas vezes que o álbum ilustrado é a primeira galeria de arte da criança. Talvez até eu própria já o tenha dito aqui a propósito de outro livro, porque, como sabe quem aqui vem, a parte gráfica é uma das características dos álbuns que mais me chama.
Este, que hoje aqui trago, devo ter demorado um bom quarto de hora a lê-lo — e não porque o texto da Dora seja difícil de escrutinar: a Dora Batalim é uma apaixonada por bons livros e aposto que adorou recontar esta história doida! Demorei nele, com ele, porque percorri as páginas com a calma do verão que nos torna novamente um pouco mais crianças. E porque as ilustrações pediam, pedem, essa atenção que, a partir do momento em que as letras se nos revelam, perdemos.
As ilustrações do Gonçalo surpreenderam-me, ao mesmo tempo que as reconheci imediatamente — são tremendamente autorais. Só podiam ser dele, sim. Mas estão, parece-me, num nível totalmente novo.
A personalidade das ilustrações do Gonçalo Viana vive de uma estranha mistura de uma estética de leste, com os ares fortes e antigos que respiramos na aldeia (e que são diferentes do vintage) e de uma profunda contemporaneidade. Isso sempre. O que vejo aqui de novo (ou talvez sempre tenha lá estado e só agora eu a tenha visto pela primeira vez) é um realismo desconcertante, físico, talvez, que me fez ficar alerta e que, numa história como esta, me levou de volta à infância.
Lembro-me vagamente da minha avó nos contar esta história-lenga-lenga. Lembro-me principalmente de me fazer imensa impressão a história do rabo e da navalha. Na minha cabeça realistico-infantil, tudo aquilo era impossível, se misturava com sangue e dor e julgo que nem ouvia o resto da história por ficar presa, dentro da minha cabeça, à resolução daquilo que me incomodava. Se me pedissem hoje para contar esta história, não o saberia fazer.
Esse realismo sempre esteve lá, na verdade, mas num notável poder de síntese, tal como aparece, em todo o seu esplendor, na bata do barbeiro. O que encontro de novo, aparece logo na ficha técnica, no pêlo do rabo do macaco, para depois reaparecer de forma brilhante na primeira página da lavadeira: o olho, as mãos — que portento. Por entre esta estética cuidada, controlada, artificial, sente-se aqui uma realidade real, com rasgos de cheiros que sentimos mesmo, texturas que podemos tocar, sons que conseguimos ouvir.
O regresso à cidade não é fácil para quem, como nós, pôde fugir dela durante meses, sem máscara. As máscaras escondem-nos e muitas vezes escondem também possibilidades. Não estamos fechados em casa, mas sentimo-nos aprisionados nas máscaras e não temos grande vontade de sair. Somos caseiros, tornamo-nos mais. E com exposições destas nas mãos, quem quer mesmo sair?
Chegar a casa, com livros destes à nossa espera, é um privilégio. No meio de tanta incerteza e dificuldade, continuar a haver ideias assim, 100% nacionais, de do velho se fazer novo (tal como do rabo se fez navalha), são o impulso de energia que todos precisamos para acreditar que vale a pena reinventarmo-nos, que de uma coisa pode vir outra ainda melhor, que a felicidade se faz de coisas simples.
Hoje termina o prazo para a subscrição do pacote™ de setembro (e do trimestral de outono). Por mim, cá continuarei a vir aqui mostrar livros magníficos, novidades e clássicos, e a fazer com eles pares para os enviar até vossa casa. Sem máscaras e com imensas possibilidades.
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O macaco do rabo cortado
Livros horizonte, 2020
Dora Batalin texto, Gonçalo Viana ilustrações
isbn 9789722419635
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