Este vírus, que nos virou a vida do avesso, fez (está a fazer) bem à Terra e à cabeça de muitos Homens.
É como se toda a humanidade tivesse engolido uma tampa e estivesse suspensa num momento entre o vai-para-cima ou vai-para-baixo, sem respirar. Um daqueles intermináveis segundos, que já todos vimos no cinema e já experimentámos na vida em grandes momentos, em que tudo fica congelado e só o nosso coração bate. Há, normalmente, a seguir, uma grande revelação ou uma enorme mudança no curso da narrativa ou da História.
Protesto — eu e todos os Homens de boa vontade, quero acreditar — pelo presente e futuro da Terra enquanto lugar para viver. Um lugar que queremos o mais justo e equilibrado possível, entre todos os seres vivos.
Com a pandemia veio a constatação das suas consequências positivas ao nível do ambiente. Com o assassinato de mais um americano por violência policial (etecetra, etecetra) vem a constatação de que há coisas que permanecem terrivelmente na mesma. Com ou sem pandemias, com ou sem a Terra a caminho do desastre ambiental.
A globalização, a que a pandemia veio dar novas provas físicas irrefutáveis, faz de nós hoje americanos. Mais, faz de mim hoje uma branca americana com a responsabilidade que isso acarreta, tem de acarretar.
Vi a este mundo privilegiada em muitos aspetos, desde logo pela cor da minha pele. Não é possível ignorar este facto. E temos de fazer mais, como educadores, como cidadãos, como divulgadores de livros, seja como for.
Todas as vidas contam, todas as vidas são importantes, todas as vidas são únicas e irrepetíveis, nesta Casa Comum. Não há várias raças humanas. Ela é mesmo só uma. É fácil dizer, é fácil escrever. Mais difícil é fazer de facto alguma coisa.
No meu papel de mãe, falei ontem com os meus três rapazes no sentido de os fazer ver, mais uma vez, como somos privilegiados. Fazemo-lo todas as noites, ao agradecermos juntos o dia que tivemos. Mas ontem sublinhei a cor da nossa pele, tão diferente entre nós e ainda assim, todos tons privilegiadíssimos à nascença. De como isso nos dá então uma tão grande responsabilidade de acção, de voz, de justiça sempre que tivermos oportunidade. E de como às vezes essas oportunidades têm de ser criadas.
Se há coisa que por aqui não há são pássaros calados. Fazem-se ouvir bem alto desde manhã cedo até ao fim do dia que — repararam? — já está tão longo. Na semana passada, em Lisboa, também demos conta de um novo pássaro no pátio. Cantava altíssimo, em diálogo com outros em jardins vizinhos. Não era o melro que lá costuma ir apanhar as migalhas que deixamos cair ao almoço e não o conseguimos ver por entre as folhagens para descobrir quem era.
O deste livro calou-se, irreverente, parece. Com ele, muitos outros animais o fizeram, à sua maneira.
Depois deles, também as crianças deram sinal.
Não é um livro silencioso, mas o enredo de Eduarda Lima, texto e ilustrações, tem esse poder do silêncio.
E o aviso foi dado. Pouco importa se, afinal, começou num mal entendido. Para bom entendedor, meia palavra (ou mesmo o silêncio) basta. Pouco importa que a Terra esteja de melhor saúde por causa da pandemia. Isso é uma oportunidade. Muito importa que mais uma vida se tenha perdido de uma maneira tão brutal, tão injusta, tão sem sentido. Que ao menos possa também ser uma oportunidade, abrindo algum caminho no meio do caos.
Este O protesto acaba no futuro. O que irá acontecer?
Viramos a última página para a contra-capa e depois? Salta-nos a tampa, ou quê?
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Orfeu Negro, 2020
Eduarda Lima
isbn 9789898868824
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