Sozinho ou em família.
Entre os 15 e os 25 anos vivi em frente a um farol. Não era com o deste livro que aqui hoje trago, isolado no meio do mar; estava preso a terra e não usava o sinal sonoro, mas a sua luz intermitente sempre foi uma boa companhia.
Mal vi este Olá, Farol! percebi que tinha de ser um dos #livrosantivirus — mesmo que não haja cupão da prateleira-de-baixo. A Fábula não tem loja online, mas podem aproveitar para o pedir a uma livraria independente perto de vossa casa, que deve estar a precisar da vossa "visita".
Ando a contar histórias ilustradas aos meus sobrinhos pequenos e esta foi a primeira que escolhi, porque agora todos vivemos num farol. As nossas paredes parecem circulares de tanto andarmos às voltas dentro de casa e, o mundo lá fora, em vez de um mar de possibilidades, parece mais um imenso vazio. Hoje, todos somos faroleiros.
As ilustrações realistas e delicadas, um pouco vintage, até, são surpreendentes pelos pontos de vista arrojados, inventivos e surpreendentes, criando quadros incríveis. A vida emoldurada em círculos no interior do farol, alterna num ótimo ritmo com as duplas páginas da imensidão do mar e da voz do farol.
A descrição da rotina do faroleiro é semelhante à nossa: tem muito tempo nas mãos, por um lado, mas por outro tem de respeitar horários online ditados pelo nevoeiro ou pela necessidade de manter a chama acesa durante a noite. No resto do tempo, cozinha, trata da casa e arranja tempo para ler, bordar, preparar cartas e escrever no Diário do Farol.
As visitas que chegam do exterior não vêm de máscara e ele não tem de desinfetar tudo o que lhe entra pela porta dentro, mas passo a achar essa rotina infernal uma brincadeira de crianças quando comparada com a transferência de mercadorias (ou de pessoas!), do navio abastecedor para o farol, no meio de uma chuvada ou ventania valentes, naquelas cadeirinhas de lona.
"Com o mal dos outros posso eu bem." é uma expressão meio ressabiada e bastante irritante. Nestes tempos, tem me vindo à cabeça de outra forma. Porque, por um lado, me sinto muitíssimo privilegiada por estar tão bem no meio deste caos e, por outro, porque o facto de estarmos todos no mesmo barco — ou neste caso, todos no mesmo farol — é realmente reconfortante. No nosso isolamento, sentimos-nos bem acompanhados.
A vida sempre foi feita de rotinas, agora só se sentem mais. E são ainda mais necessárias, digo eu. O improviso essencial à frescura dos dias é muito mais arriscado, se queremos (ou podemos) mesmo sair o menos possível. Mas é possível e necessário encontrar esse tempo e lugar para a surpresa.
Tal como o faroleiro trata da luz do farol, também nós pais temos de dar combustível e aparar o pavio queimado aos nossos miúdos. Para o dia brilhar, num miúdo, basta um momento vivido em pleno. Isso dá-lhe brilho por muito tempo. E temos que conseguir criar esse momento, todos os dias.
Imaginemo-nos num farol. Pintemos as nossas paredes circulares interiores de verde mar e transformemos o tempo offline e offwork, (seja ele muito ou muito pouco), em belíssimas viagens, lugares, sonhos, disparates, jogos, risotas, silêncio.
Os livros são barcos privilegiados para estas viagens. Ou faróis, que nos ajudam a ver o caminho e a metermo-nos na pele de gentes tão diferentes e, afinal, tão iguais a nós.
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Fábula, 2020
Sophie Blackall
isbn 9789896687540
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