Hoje ponho aqui um livro que já vai fazer 3 anos e que gosto muito de enviar em pacotes para irmãos. Devia fazer uma lista de livros "antigos" que estranhamente nunca chegaram a aparecer aqui. Mas hoje lembrei-me de A bola amarela porque é urgente brincar e inventar. Porque é urgente guardar um lugar onde tudo pode acontecer.
Este sábado, para apanhar o bom ar primaveril, almoçámos lá fora e depois eu e o R varremos o pátio todo para tirar a areia em excesso com que ficou na obra e que me suja a casa toda. Eu com a vassoura grande, ele com a pequena e a pá. Estivemos mais de uma hora nisto.
No domingo, depois de encestar umas quantas bolas, foi ao armário buscar a vassoura e a pá e voltou a varrer. Está viciado.
Hoje uma amiga passou para apanhar um boneco e um atacador esquecidos por um dos filhos. Rimos da importância extrema daquele pedaço de fio.
Mas a verdade é que o R pode passar uma tarde inteira a brincar com o elástico lilás dos espargos verdes ou com um borrifador de roupa. Um balão faz furor ainda entre os três por três dias.
Não sei que ligações de neurónios se fazem com tamanhas riquezas, mas sei que se fazem. Ocupar tempo e espaço com pouco é um privilégio que muitos meninos não têm pelas suas agendas sobrecarregadas ou pelo excesso de brinquedos que têm no quarto.
Por outro lado, os tempos estranhos que estamos a viver, em que os miúdos ouvem, como nós, falar de um ser invisível que está a mudar a vida a tanta gente, pedem que seja urgente guardar o espaço sagrado da infância. Não é fingir que não está a acontecer nada, até porque está e é óbvio para elas, mas é essencial continuar a guardar lugares como a dobra entre as páginas de um livro.
O Luís e a Luísa fazem um jogo de ténis amigável. Pelas suas expressões e interjeições, não parece nada amigável, mas ele há seres muito competitivos.
Mas eis que a bola cai na dobra entre as páginas. What?? Pois é, o livro passa inesperadamente de campo virtual de batalha e de história a objeto tridimensional, espacial. De repente, na história, um buraco negro, um buraco de Alice, uma charneira profunda, uma fresta de possibilidades.
Em Athem, de Leonard Cohen, há este verso muito bonito: "There is a crack, a crack in everything/That’s how the light gets in." E neste livro, o drama da bola perdida por entre as páginas, por esta quebra no contínuo espaço-tempo, é o mote para a aventura que se segue e para a qual somos convidados.
É daqueles livros que dá prazer ler, jogar e brincar em conjunto.
É de gargalhada, de confusão, de loucura. Mistura-se Deus com a Página, páginas digitais com páginas hiper-realistas, comédia com drama.
Visto daqui, parece-me o livro ideial para os tempos que correm.
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A bola amarela
Planeta Tangerina, 2017
Daniel Fehr texto, Bernardo P. Carvalho ilustrações
isbn 9789898145789
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