Andava eu ontem à procura do Outro, quando o B, 15, me disse que estava no seu armário. Como o esqueci em cima da cama dele, (onde fui pousar mais 15 livros que mantém em "funcionamento", para não dizer "desarrumação"), presumiu que era para ele o ler.
Leu, gostou e guardou-o — ao pé dos Bolaños que anda a conhecer, dos Conan Doyle que anda a reler, dos livros históricos onde encontra passagens que nos vem mostrar onde, pela análise histórica, fazem previsões sobre o aparecimento de uma pandemia, como esta.
Estamos todos em casa. As escolas deles já fecharam, por precaução. Vale-nos o pátio: que luxo um pouco de rua dentro de casa. O clã familiar alarga-se aos primos que partilham o pátio, o que é outro luxo.
Uma amiga goza comigo dizendo que sou uma visionária, por já estar de quarentena há mais tempo que toda a gente. Mas agora estamos todos. E estamos Todos. Por isso lembrei-me do Outro.
No Outro há um outro e um outro lugar. E é esse "outro" e esse "outro lugar" que agora temos de conseguir encontrar e mostrar o caminho aos miúdos.
A menina dorme e o gato vigia. Até que, num lugar da parede, um holofote vindo não se sabe de onde ilumina o negro da parede, depois um gato — um outro gato. O gato acaba por sair desse "O" de luz e, por onde entrou, sai com o ratinho de pano que ali estava no chão. A menina entretanto acorda e, com o seu gato, seguem para esse lugar desconhecido, de repente, tão brilhante e iluminado como uma página em branco.
Ao longo desta história sem palavras, mais destas janelas de oportunidade aparecem, como que em cadeia. E vários lugares e personagens acontecem na vida da menina e do seu gato.
Acabam por encontrar uma menina e o seu gato, com o ratinho roubado. Estão em espelho, no cimo da página. E devolvem o ratinho que atiram, página abaixo.
Estamos em casa. Trabalhamos em casa. E temos a sorte de o conseguir e poder fazer (ainda não regressei à minhas aulas por estar a recuperar o meu pulmão). Na próxima semana os miúdos estarão também a trabalhar à distância, o que será um desafio novo para todos nós. Vamos arranjar um horário para ajudar os mais novos, mas a experiência de homeschooling que nunca cheguei a fazer chegou agora.
Entretanto, temos os benefícios de estar mais tempo juntos em casa: jogamos um jogo ao serão, porque a hora de acordar pode passar mais para a frente, o T está a compôr música entre o piano e a viola, fiz uma mini-biblioteca para cada um, para estes dias, muito provocatória, para variarem a ocupação das horas vagas, agora que as horas vagas são mais. E estamos a pensar montar uma peça de teatro. Uma amiga deu O diário de Anne Frank para os filhos lerem nesta altura — o que me pareceu genial. E contou-lhes a sorte que têm, por poderem fazer barulho!
O Outro mostra-nos lugares que não sabemos que existiam, muitas vezes dentro de nós. Nós como indivíduos, nós como família. O outro é diferente. O outro é importante. Saibamos aproveitar esta reclusão que pretende defender o outro (e "o outro" podemos ser nós), para dedicar tempo a estar, a descobrir, a criar, a crescer. E a ler mais, sozinhos e acompanhados!
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Outro
Orfeu Negro, 2020
Christian Robinson
isbn 9789898868633
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