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27.3.20

Mas onde está esse tempo de que todos falam?

As ofertas de ocupação do tempo são mais que muitas. Chegam por Whatsapp, por Instagram, por email. Concertos, filmes, livros, artigos, conferências, orações, vídeos, anedotas, conversa entre primos&tios, histórias, aulas de desenho.
Comecei a escrever este postal na segunda-feira e termino-o hoje, sexta-feira — e parece que passou um ano. Mas continuo a observar um enorme desequilíbrio entre gerações: uns têm dias compridos e sozinhos demais, outros são atropelados pela sucessão de acontecimentos e de gente que lhes passa (literalmente) por cima e que lhes engole o dia.

A geração dos avós está sozinha e sedenta de comunicação. Assoberbada pelas notícias e pelo tempo que poderá ter pela frente, assim.

A geração dos pais está em parafuso.

No meio do malabarismo entre manter a casa a funcionar (comida, limpeza, compras, ritmos), o trabalho que tem para fazer (com as tecnologias, grande parte do dia, reféns da geração dos filhos que delas precisa também para agora poder estudar), o trabalho que tem para aprender a fazer (com as diferentes variantes de teletrabalho e as múltiplas apps para reuniões), o apoio aos filhos mais novos (seja para os ocupar ou para os ajudar a estudar), o apoio aos filhos mais velhos (para lhes conseguir dar espaço e orientação qb), o apoio aos pais (com telefonemas sobre tudo e sobre nada e ajuda nas compras), tenta manter a sanidade mental.

Sou muitíssimo organizada, em excesso, até. Criámos um horário para os miúdos, com a participação de todos, que foi sendo revisto e adaptado à realidade que fomos experimentando ao longo destas duas semanas. Mas estabelecer uma rotina — e quebras na rotina — (vem em todos os livros), é absolutamente essencial para o equilíbrio das crianças e adolescentes. E acho que para mim também, por isso foi a primeira coisa que fiz.

Miúdos organizados, sãos, ocupados, felizes — na segunda-feira; no fim da semana, uma ou outra insónia, antes coisa inédita.
Casa a funcionar, limpa (sempre suja outra vez, mas enfim), ritmos, refeições.
Até aqui tudo bem. Mas onde está o tal tempo de que todos falam?

Antes deste bicho faltava-me tempo para os meus pais e era difícil combinar coisas com os amigos. Continuo com pouco tempo para os meus pais (porque agora eles precisam de mais ainda, mesmo que seja de longe) e nem ao telefone consigo matar saudades dos amigos porque andam todos numa roda viva. E o meu tempo — e tinha o luxo (vindo, em parte, do excesso de organização) de ter algum! — anda desaparecido em combate, literalmente.
E nem os que não são "os mais velhos" nem "os que têm filhos" parecem escapar a esta outra doença: também a eles o tempo parece escorrgar das mãos, como o sabão.

Este Um livro para todos os dias tem 15 anos, mas ao lê-lo agora, parece que foi feito para cada dia deste presente-futuro.
A vida é — e sempre foi — feita de equilíbrios instáveis, sempre a precisar de redesenhos constantes. E agora, mais que nunca, temos de saber aguentar o barco. Nunca foi fácil e não é agora que vai começar a ser.
Mas há-de haver uma altura em que nos conseguiremos reinventar e voltar a encontrar um tempo-espaço para cada coisa. Com a certeza de que melhores dias hão de vir por aí. Se virmos bem, eles até já começaram a aparecer!

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Um livro para todos os dias
Planeta Tangerina, 2004
Isabel Minhós Martin texto, Bernardo P. Carvalho ilustrações
isbn 9789898145406

2 comentários:

  1. Este livro... nesta altura.. faz tanto sentido <3

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    1. Pois é! E assim se prova que um leitor também faz o livro...

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