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19.3.20

Crescer mais depressa

Confesso que costumava sentir uma certa lacuna na minha existência por não ter vivido o 25 de abril. Não propriamente a ditadura, que dispenso, mas as histórias incríveis desses dias e dos tempos que se seguiram. A loucura, a incerteza, o desenrasca, o risco, a cumplicidade, o medo.

Percebemos que toda a gente foi obrigada a crescer mais depressa, que a vida mudou para todos, independentemente do lugar ou do lado onde estavam antes. E sinto sempre uma cumplicidade na geração a cima que tem a ver com qualquer coisa que não se verbaliza, mas que é partilhada pela geração inteira e à qual não tenho acesso.

Nunca passei fome (bem, talvez uma certa larica na nossa estadia de 3 meses no Japão, há 20 anos...) e muito menos imaginei que isso pudesse vir a acontecer aos meus filhos. E não está de todo a acontecer. Mas, quando voltámos a precisar de frescos e não quisemos ir até à D. Augustinha da Rua da Rosa para manter o percurso mais curto, o supermercado do bairro não tinha sido abastecido. O cenário que o nosso caçador de serviço descreveu seria inimaginável até há uma semana atrás. Já não me posso queixar de "uma certa lacuna na minha existência" por não ter vivido um tempo exigente, estranho, louco, incerto e que irá também, com certeza, ligar toda uma — várias — gerações.

Tão tão estranho como tudo pode mudar quase de um dia para o outro e de maneiras tão surpreendentes.

Desde que mudámos de casa que o espaço e meu excesso de organização permitem ter em casa a recarga de quase tudo, por isso, quando na sexta-feira passada abri o armário, o frigorífico e a arca e fiz uma lista de ementas, percebi que tinha duas refeições para os cinco para mais de 15 dias sem ter de ir às compras. É claro que leite e fruta não duram muito por aqui e os legumes que não congelo também desaparecem ao fim de uma semana. Mas não estamos mal.

Vou (ou ía) aos CTT várias vezes, mas só uma vez comprei lá um livro. Gostei do ar despretencioso que tinha no meio dos "gritos" que os outros livros à sua volta davam no escaparate. E hoje lembrei-me dele quando recebi o aviso do Refood de que tinham agora de fechar e tentar perceber como ajudar de outra maneira, nesta altura.

Visualizei o trajeto que fazemos à segunda-feira à hora do almoço, as portas em que batemos, as pessoas que acenam da janela, em agradecimento — já que, normalmente, sou a motorista. Revi os nomes e as caras do Sr José, da D. Maria e pensei que o pior de toda esta situação é a desajuda.

O facto de termos de estar longe uns dos outros e o mal que isso faz a tanta gente a quem a entrega de um saco de comida vale muito mais do que apenas o saco de comida. Para alguns, o sorriso da Charlotte, que carrega o saco até casa deles, é por vezes o único sorriso que vêem nesse dia.

E não temos de ir até à última paragem, como o Alex e a Avó, que atravessam a cidade para ir ajudar os outros: o Sr José e a D. Maria vivem mesmo aqui ao lado.

NestA última paragem vamos percebendo pequenas lições, pequenos poemas que a Avó oferece subtilmente ao neto, quando este a bombardeia com perguntas sobre o porquê de não terem carro, o porquê de terem de ir todos os domingos àquele zona da cidade tão suja, o porque de terem de apanhar tanta chuva: "As árvores também têm sede. Não vês aquela árvore enorme a beber por uma palhinha?"

Há muitas coisas boas a vir disto, claro que sim, e é nelas que nos devemos agora concentrar. As lições da Avó, (como de quase todas as avós!) são sábias e preciosas. Mas também é importante aproveitar este tempo para dar o devido valor da presença efetiva e não virtual que temos na vida uns dos outros. Talvez este tempo seja o de tomar decisões para que, quando regressar o tempo da normalidade, essa possa ser muito mais bonita do que era, muito mais presente do que foi.
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A última paragem
Minotauro, 2017
Matt de la Peña texto e Christian Robinson ilustrações
isbn  9789899978508

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