Confesso que costumava sentir uma certa lacuna na minha existência
por não ter vivido o 25 de abril. Não propriamente a ditadura, que
dispenso, mas as histórias incríveis desses dias e dos tempos que se
seguiram. A loucura, a incerteza, o desenrasca, o risco, a
cumplicidade, o medo.
Percebemos
que toda a gente foi obrigada a crescer mais depressa, que a vida mudou
para todos, independentemente do lugar ou do lado onde estavam antes. E
sinto sempre uma cumplicidade na geração a cima que tem a ver com
qualquer coisa que não se verbaliza, mas que é partilhada pela geração
inteira e à qual não tenho acesso.
Nunca
passei fome (bem, talvez uma certa larica na nossa
estadia de 3 meses no Japão, há 20 anos...) e muito menos imaginei que
isso pudesse vir a acontecer aos meus filhos. E não está de todo a
acontecer. Mas, quando voltámos a precisar
de frescos e não quisemos ir até à D. Augustinha da Rua da Rosa para
manter o percurso mais curto, o supermercado do bairro não tinha sido
abastecido. O cenário que o nosso caçador de serviço descreveu seria
inimaginável até
há uma semana atrás. Já não me posso queixar de "uma certa lacuna na
minha existência" por não ter vivido um tempo exigente, estranho, louco,
incerto e que irá também, com certeza, ligar toda uma — várias —
gerações.
Tão tão estranho como tudo pode mudar quase de um dia para o outro e de maneiras tão surpreendentes.
Desde
que mudámos de casa que o espaço e meu excesso de organização permitem
ter em casa a recarga de quase tudo, por isso, quando na sexta-feira
passada abri o armário, o frigorífico e a arca e fiz uma lista de
ementas, percebi que tinha duas refeições para os cinco para mais de 15
dias sem ter de ir às compras. É claro que leite e fruta não duram muito
por aqui e os legumes que não congelo também desaparecem ao fim de uma
semana. Mas não estamos mal.
Vou
(ou ía) aos CTT várias vezes, mas só uma vez comprei lá um livro.
Gostei do ar despretencioso que tinha no meio dos "gritos" que os outros
livros à sua volta davam no escaparate. E hoje lembrei-me
dele quando recebi o aviso do Refood de que tinham agora de fechar e tentar perceber como ajudar
de outra maneira, nesta altura.
Visualizei
o trajeto que fazemos à segunda-feira à hora do almoço, as portas em
que batemos, as pessoas que acenam da janela, em agradecimento — já que,
normalmente, sou a motorista. Revi os nomes e as caras do Sr José, da
D. Maria e pensei que o pior de toda esta situação é a desajuda.
O
facto de termos de estar longe uns dos outros e o mal que isso faz a
tanta gente a quem a entrega de um saco de comida vale muito mais do que
apenas o saco de comida. Para alguns, o sorriso da Charlotte, que
carrega o saco até casa deles, é por vezes o único sorriso que vêem
nesse dia.
E
não temos de ir até à última paragem, como o Alex e a Avó, que
atravessam a cidade para ir ajudar os outros: o Sr José e a D. Maria
vivem mesmo aqui ao lado.
NestA última paragem
vamos percebendo pequenas lições, pequenos poemas que a Avó oferece
subtilmente ao neto, quando este a bombardeia com perguntas sobre o
porquê de não terem carro, o porquê de terem de ir todos os domingos
àquele zona da cidade tão suja, o porque de terem de apanhar tanta
chuva: "As árvores também têm sede. Não vês aquela árvore enorme a beber
por uma palhinha?"
Há
muitas coisas boas a vir disto, claro que sim, e é nelas que nos devemos
agora concentrar. As lições da Avó, (como de quase todas as avós!) são
sábias e preciosas. Mas também é importante aproveitar este tempo para
dar o devido valor da presença efetiva e não virtual que temos na vida
uns dos outros. Talvez este tempo seja o de tomar decisões
para que, quando regressar o tempo da normalidade, essa possa ser muito mais bonita do que era, muito mais presente do que foi.
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A última paragem
Minotauro, 2017
Matt de la Peña texto e Christian Robinson ilustrações
isbn 9789899978508
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