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21.2.20

De voltas trocadas

A vida tem modos imprevistos de nos trocar as voltas.
Tinha pensado pôr aqui este livro na semana passada para poder falar-vos do lançamento do livro, da exposição e da peça que o acompanhavam no Lu.Ca até ao domingo passado.

Tinha pensado falar-vos de como, ao subir a Calçada de Santo Amaro, das Flores à Estrela, eu e o R nos tínhamos sentido como as personagens do fim do livro, com a cabeça nas nuvens (ou na árvore), tal era o nevoeiro que por esses dias assolava as manhãs lisboetas.

Como me parece impossível, agora, essa subida já antes difícil. Normalmente temos três vidas para a subir. Quando estamos muito cansados podemos dizer "Valha-me Santo Amaro!" para termos mais poderes, mas se dissermos três vezes, perdemos o jogo. Qual jogo? O nosso. Estamos sempre a jogar alguma coisa. Por estes dias, subidas são uma verdadeira miragem.

Quando era pequena e ouvia falar da alma, imaginava sempre um pulmão. Não sei se é deformação profissional ou só uma extensão da minha sinestesia, mas não consigo imaginar o que quer que seja sem que tenha para isso um desenho. De maneira que a alma era — é — como um pulmão.

A alma, o pulmão, a nuvem — tudo se confundiu na semana passada inesperadamente. A saúde é assim, frágil, imponderável e discreta como uma pétala: não sabemos que está lá até percebermos que não está.

Naqueles dias, tive a sorte de ter uma belíssima janela por onde me espreitavam a ponte, o tejo e o Cristo Rei. De lado, na cama do hospital, enquanto o cirugião me fechava o pulmão e me dizia para respirar fundo, assim, na horizontal, só via o céu.

Então concentrei-me numa nuvem que ali estava parada e iluminada, de certeza que expressamente para eu a poder olhar e suportar melhor o que se passava. E garanto-vos que a nuvem era igualzinha à nuvem-árvore do Troca-tintas. Mesmo! E era também mágica, pois foi de todas as cores e todos os sabores, melhor que qualquer analgésico e tudo menos indecisa. O cirugião era o alfaiate.

As cores fora do sítio — ou só noutros sítios — são explosões de felicidade; o desenho, sublime em mestria e arrojo. Uma combinação de formas e cores muito mais simpáticas que as douradas e castanhas que tinha obcessivamente de encaixar dentro da minha cabeça, na noite após a anestesia.

Do alto do seu daltonismo, o R adora este livro. É sensível ao sentido de humor e à beleza, mas também, estranhamente, às cores. Andámos a fazer eperiências outra vez, com o Troca-tintas e com os Beatles. Não me parece que tenha um espectro reduzido, é só diferente e mais difícil de nomear cores. Além de que consegue até fazer magia a vê-las onde nós não as vemos.

Não o tinha o Troca-tintas no hospital, mas as ilustrações que levava na memória fizeram-me uma imensa companhia. E não concordo de todo com o coro do pavão: este ilustrador é uma grande coisa!
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Troca-tintas
Orfeu Negro, 2019
Gonlaço Viana
isbn 9789898868671

3 comentários:

  1. Belissimo! Senti na alma, no pulmão e no coração estes momentos...que parecem eternidades, vividos pelo???
    Troca Tintas!!! Muito Bom.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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