Tempo, ternura e talento

Passei os últimos dois meses a trabalhar no TNDMII, a ajudar a construir corpos e cena, a trabalhar com pessoas que fazem magia todos os dias: ver os desenhos que fazia no papel aparecerem sobre os corpos dos atores e no espaço é mesmo especial.

Também a dupla Miguel Gouveia&Raquel Catalina fizeram magia com esta história que construíram a partir de um conto da tradição judaica.

E é também magia o que se passa nesta história: de quando em quando, José passa no atelier do avô para que ele faça um passe de mágica com a manta, objeto da sua predileção, oferecido pelo avô-alfaiate no dia em que nasceu.

História e ilustração são de uma delicadeza enternecedoras, comoventes, até. É muito bonito acompanhar o crescimento do miúdo a par da evolução da sua relação com o avô. Um avô de gravata preta que tem tempo, ternura e talento para oferecer.

Quem tem a sorte de ter filhos e pais pode observar como um espetador (ou um leitor!) a história de encantar única e irrepetível que se vai desenrolando entre avós e netos, desde o berço até que lhes começa a despontar a primeira barba — e mais além.

Talvez por isso (porque barba ainda por aqui não há, mas qualquer coisa que se começa a assemelhar a um bigode, pois, isso já cá canta) o escolhi para muitos dos pacotes de Natal que enviei.
A manta do José é uma daquelas histórias eternas e sem idade aconselhada, porque aconselhada para todas, dos 0 aos 100.

É também uma história muitíssimo contemporânea porque nela encontramos o constante esforço de ambas as personagens na reutilização e reinvenção de um objeto afetivo, claro, mas também útil e adptável às diferentes fases da vida do miúdo. Ninguém aqui foi às compras para resolver o que quer que seja.

Gostava também de poder sublinhar a contemporaneidade deste livro na elevação que faz dos mais velhos, no modo como a sabedoria da idade transborda aqui subtilmente, na segurança do miúdo de que vai encontrar respostas no ancião, no afeto físico ilustrado ao longo das páginas. Mas sei que não é assim que tratamos os mais velhos, em geral, como sociedade.

Livros como este abrem caminhos para um futuro mais justo, tenho a certeza. Já viram rugas mais bonitas do que estas?
As ilustrações são de uma rara qualidade que junta realismo e sonho, simplicidade e complexidade, ternura sem lamechice.

E depois há o final da história, que é um recomeço, afinal. Mas é também uma promessa de eternidade quando não há mais tecido que se possa agarrar, quando parece que nem a maior boa vontade, mestria e imaginação do avô poderão salvar aquele objeto que une os dois.

As histórias têm muito poder e muitos poderes. Esta tem super-poderes.
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A manta do José
Bruaá, 2019
Miguel Gouveia texto, Raquel Catalina ilustração
isbn 9789898166449