Na semana passada saiu um artigo no NYT sobre a descoberta de um novo tipo de branco. O branco perfeito, dizem.
Também na semana passada vi um documentário da BBC sobre o Branco na História da Arte, parte de uma triologia em que entram também o Azul e o Dourado.
Nos meses que passaram, tivemos acaloradas discussões sobre a
temperatura dos brancos e dos cinzas das paredes da nossa casa nova.
A cor é um assunto sensível. Sensível mesmo, no sentido em que, está ligado a um dos cinco sentidos. Mas também porque, tal como nem toda a gente tem a mesma sensibilidade aos cheiros, por exemplo, também nem toda a gente consegue ver tonalidades de cinza, azul, violeta, creme, amarelo, num aparente só-branco.
Já esta semana, falava com o B sobre como mais facilmente usaremos a cor para descrever alguém de pele escura do que alguém que seja mais ou menos moreno ou mais ou menos loiro. É claro que as cores são característica distintivas, como as alturas, a gordura ou a cor dos olhos, mas fiquei a pensar se nesse primeiro instinto de referir a cor da pele negra mais rapidamente do que outros tons de pele (chamando por isso a raça à questão), poderiam existir laivos de reminiscência racistas.
A cor é um assunto sensível, dizia. E a cor de pele é um não-assunto que é um grande assunto, ainda. E o politicamente correto é muitas vezes tão inimigo de uma normalidade como o politicamente incorreto — no pior sentido do termo.
A propósito de uma recente curadoria no LU.CA para acompanhar o espetáculo Bianca e o Ciclo sobre o Racismo, um dos livros que escolhi foi o que hoje ponho aqui na prateleira.
Paralelamente procurei em vão um exemplar dO menino de cor e acabei por
escolher para o acompanhar (além do Popville e do Bianca — que tinham
diretamente a ver com o espetáculo) O Estranho, As mulheres e os Homens,
Pequeno Azul e o Pequeno Amarelo, Elmer e O Homem de água. [Inacreditável ainda não ter escrito sobre os livros que estão sem link...]
"A neve é branca e Pedro é negro. Claro que não é negro-negro, como a neve não é branca-branca. Mas este é o primeiro menino de raça negra a aparecer num livro para crianças e foi publicado pela primeira vez há 56 anos, nos Estados Unidos da América. Se pensares bem, é mesmo estranho que, até aí, nenhuma criança de raça negra se tenha revisto num livro. É verdade que a cor da pele não é mesmo nada importante, mas também é verdade que, se todos somos diferentes, é muito estranho que os livros não tenham aventuras com personagens como todos nós."
Foi isto que escrevi para acompanhar o livro. Mas, antes de escrever, pensei no estranho que é este livro ter sido editado pela primeira vez em Portugal em 2018. Pensei se faria sentido ser tão importante historicamente, ainda, apenas pela cor de pele da personagem principal. Pensei na fama que esta personagem terá dado ao seu autor. Li sobre o assunto e hesitei ainda sobre o valor artístico da história e ilustrações, no contexto da época, fora a questão da cor da pele.
Depois pensei que mesmo mau era inventar problemas, pensar demais, pôr politicamente correto sobre politicamente correto e não dar a conhecer um livro realmente pioneiro e no qual tantos meninos — de tantas cores —se hão de rever e sonhar com a neve, que rareia por estas bandas.
Para além da sua importância sociológica, Um dia de neve é também, mesmo, um álbum graficamente vanguardista, cuja história infantil (no melhor dos sentidos) nos é contada como se viesse diretamente da boca de uma criança, com onomatopeias e tudo!
Não sei se uma criança, ao ler este livro, dará hoje conta da pele de Pedro. Cá em casa não deu para fazer a experiência porque lhes falei do contexto do livro. Mas acredito, quero creditar, que, com tantas personagens de tantas cores que por aí andam, a cor deste menino não seja para onde as crianças vão olhar.
Mesmo na última página, Pedro atravessa a rua para chamar um amigo e ir brincar com ele. Os dois estão de costas. Mas gosto de imaginar que, por de trás do recorte que desenha o fato de neve, o amigo tem a pele verde às pintinhas cor de laranja. Porque — o que é que isso interessa?
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Um dia de neve
Orfeu mini, 2018 (1ª edição de 1962)
Ezra Jack Keats
isbn 9789898868152
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