Chegou o verão.
Tinha aqui este livro guardado para o mostrar agora.
João é um livro de 1965. Eu ainda não tinha nascido em 1965 e não me lembro dos bois (que o meu pai e os meus tios ainda falam) a puxar as redes, mas lembro-me de ajudar (enfim, desajudar...) os pescadores a puxar as redes para a praia. Tinham ar de poucos amigos, ou assim achava eu, mas deixavam-nos meter entre eles enquanto trabalhavam e nem olhavam quando, felizes com os tesouros vindos do mar, enchíamos o balde com os peixes demasiado pequenos que vinham nas redes entre as sardinhas, os robalos, as douradas.
Isto era ali para os lados da Nazaré, onde se passa a história de João, escrita por um alemão que terá feito uma viagem a Portugal e que assim retratou estas gentes e os seus sonhos. A Kalandraka editou-a em português pela primeira vez no final do ano passado.
Lembro-me duma cena que fiz a propósito de uma sardinha mais que morta, mas que teimei com os meus primos que tínhamos de salvar e voltar a deitar ao mar. Chamaram-me de mariquinhas — e foi uma mariquice — a mim, a única miúda no meio de tanto rapaz. Chorei, pois, e lembro-me como se fosse hoje de sofrer pelo bicho de guelra ensanguentada. E a sardinha voltou ao mar, morta.
O barulho dos barcos, as cores dos barcos, o ranger dos remos, o cheiro a mar.
À noite comia a sardinha em cima da broa, claro, e nem me lembrava que poderia ter sido a mesma que tinha salvo. As crianças gerem assim estas coisas da morte. Junto ao muro que dividia a casa de praia que os meus pais alugavam da do vizinho, montava-se o banquete. A minha mãe, rainha do fogareiro, com o pano da loiça a fazer de coroa a embrulhar-lhe os caracóis e o meu pai e tios, ao desafio, a ver quem comia mais sardinhas. Nós, ali pelo andar de baixo mais rasteiros ao chão entre o fumo e as espinhas, aprendíamos a gostar de pimentos assados e a comer com as mãos.
Era à saída da praia depois do pôr-do-sol que iam buscar o peixe diretamente à mulher do pescador, já na lota, quando passou a ser proibido comprá-las logo ali no areal, como era dantes.
A morte da sardinha é parte deliciosa desta memória.
A parte difícil desta memória — e que ainda hoje me faz ter grande respeito (para não dizer medo) ao mar — é a lembrança das mulheres todas de preto no rebordo da praia a rezarem Avé Marias.
Já não passo férias nessa praia onde estávamos o dia inteiro. Onde comia tomates como fruta com um cheirinho de sal grosso e uma bolacha amaricana que saia da lata da menina loira de sol que a transportava ao ombro. Volto lá às vezes no inverno, quando o areal ainda se parece um pouco mais com o que era, para o mostrar aos miúdos. Entretanto mudámo-nos para terra mais quente e mar mais manso.
A história de João lembra-me um pouco aquela anedota que os economistas gostam de contar do pescador que está recostado na praia à sombra do seu barco. Alguém lhe pergunta se não vai pescar e ele responde que já foi, de manhã, e que agora esta a descansar. Então esse alguém pergunta-lhe porque é que não vai pescar também à tarde. E para quê?, pergunta o pescador. E Alguém discorre sobre a vantagem de poder pescar mais, vender mais. E para quê?, volta a perguntar o pescador. Alguém teoriza sobre o crescimento económico o aumento da frota de barcos e de trabalhadores que o poderão ajudar. E para quê? Depois da escalada megalómana de pobre pescador a empresário riquíssimo, Alguém explica ao pescador que, após este esforço, o pescador poderá ficar a descansar enquanto os outros trabalham para ele. E para quê? — volta a perguntar o pescador — se é isso que já estou a fazer agora?
As ilustrações, ou pinturas, de Jan Balet parece que cheiram a papel de livros antigos e são lindíssimas.
João cresce no sonho da história, mas fica sempre do mesmo tamanho, do tamanho da infância, enquanto casa, sobe na vida, manda, tenta a revolução e viaja até à lua.
Não sei se os pescadores de então experimentaram o sonho de João. Gosto de pensar que poderão ao menos ter tentado.
Senão, resta-me a consolação de uma história que me escreveram a propósito deste livro, que enviei num pacote™ para o outro lado do mundo, em que uma menina pequenina explicou a um estrangeiro que esta praia é muito conhecida por causa das ondas recordistas, sim, mas mais do que o surf, a Nazaré e conhecida pelos seus pescadores: “os pescadores são os reis dos mares”, disse ela. Que maravilha!
[As subscrições para o pacote™de verão decorrem apenas durante esta semana!]
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João
Kalandraka, 2017 (1º editado em 1965)
Jan Balet
isbn 9789897490866
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