Sobre a mesa de jantar temos umas grandes janelas, no teto. À noite, os vidros são espelhos e brincamos com os nosso reflexos, a direita e a esquerda ao contrário, de como conseguimos tocar na comida com as mãos sem nos sujar, como o mundo fica ao contrário. Por vezes passa um avião e lembramo-nos de viagens que fizemos ou que queremos fazer, ou opinamos se o avião é a jato e sobre o que é que isso quer dizer exatamente...
De dia vemos a chuva forte ou molha-tolos, o céu azul, cor-de-rosa, branco ou cinza, os bandos de andorinhas a fazerem desenhos numa folha gigante. Ou temos só as nuvens em cima da cabeça.
Um ano inteiro passa sobre a nossa mesa, do avesso.
O Lá fora acompanha-nos nas férias; agora temos esta agenda para explorar a natureza, nem que seja aqui, no meio da cidade. Está no braço do sofá para ir espreitando.
Lembro-me de viagens intermináveis no banco de trás e da minha mãe tentar aproveitá-las para nos mostrar as lantanas no meio da auto-estrada, a esteva nos montes, o modo como os ciprestes rodeavam os cemitérios mas também a entrada da quinta da sua infância, de como algumas árvores estavam agora sem folhas, mas outras não. Lembro-me do ditado"céu cavado dentro de três dias é molhado" e da lua com auréola significar chuva, ou dum pôr-do-sol muito laranja significar um dia seguinte de muito calor.
Também me lembro de não achar qualquer interesse nisto tudo, até que um dia me interessou, e passei eu a perguntar afinal que flores eram aquelas, como é que era aquele ditado ou o que é que são nuvens de vento.
De modo que agora, espreito a agenda distraída mas religiosamente cada semana e aproveito para, apontando pela janela da sala a meio da refeição ou da janela do carro (agora no banco da frente), tentar perceber se as nuvens são altas ou baixas, cumulonimbus ou cirro.
E mesmo que muitas vezes eles olhem distraídos e continuem depois a falar sobre o Benfica ou a NBA, sei que muitas vezes é assim, distraída e religiosamente, que se aprende melhor a ser curioso e a apreciar o mundo.
De outra janela vejo como a mesma paisagem é todos os dias tão diferente e de outra ainda consigo perceber, pelo modo como voam as bandeiras do castelo, se amanhã chove ou não. Não sei isto é só ficar velha ou ficar mais sábia.
Este fim-de-semana vamos começar a apontar a hora do pôr-do-sol e fazer desenhos de nuvens.
Há semanas em que não vamos fazer nada, mas não faz mal; esta é uma agenda para muitos anos inteiros!
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Um ano inteiro — Agenda para explorara a natureza
Planeta Tangerina, 2015
Isabel Minhós Martins texto, Bernardo P. Carvalho ilustrações
isbn 9789898145703
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