Com três novelos faz-se imensa coisa: duas toucas para duas novas bebés, por exemplo,
e uma obra de Santa Engrácia que atravessará o inverno até ao próximo verão, quem sabe.
Gosto de tricotar. Não gosto como gosto de bordar ou de desenhar; tricotar é toda uma outra coisa. Não faço grandes complicações, a ideia é relaxar.
Um dia a minha sogra que é uma autêntica profissional destes (e de outros) assuntos, tentava explicar-me uma técnica e arrematava: tens de fazer contas. Fazer contas??, repliquei eu, contas já faço eu muitas, o tricot não é para fazer contas, é para deixar correr!...
É claro que tricot é matemática, mas esse lado não me entusiasma nada. Aliás como o de seguir instruções. É também por isso que adoro cozinhar, mas detesto fazer doces. A ideia de fazer aquilo sempre igualzinho à receita entedia-me brutalmente.
De maneira que, quando faço roupa para mim ou começo qualquer coisa em tricot, tenho uma ideia do que vou fazer, mas não quer dizer que acabe naquilo que começou.
Mas esta não é uma história sobre tricot. Com três novelos também se pode gritar liberdade. Que é na verdade o centro deste conto. É construído a partir duma história verdadeira e talvez por isso tenha uma ligeira sensação agridoce. É ondulante, com pontos altos e outros baixos, com decisões e deceções, como é a vida.
A liberdade não é fácil e dá sempre trabalho. Conquistam-na a primeira vez que vão a casa dos avós a pé sozinhos, ou que saem da escola à hora do almoço para irem à loja da esquina, ou quando conseguem desenvencilhar-se dos sapatos, sem ajuda. São pequenas libertações as dos nossos meninos — as nossas — ao contrário de outras tão duras, brutais.
As crianças são muito sensíveis à liberdade, ou à falta dela. Passam de pasmados a indignados quando perguntam sobre algumas notícias. É bom que se indignem e que vão à luta.
Lembro-me muito duma camisola que a minha mãe me fez, de mangas azuis escuras e corpo cheio de listras de cores, que ligo ao meu primeiro dia de escola. E não é que tenha sido a minha única camisola fixe, mas aquela foi a minha mãe que a fez.
Os meus miúdos têm camisolas feitas pelas duas avós o que é, objetivamente, um luxo; avós que toda a vida trabalharam ou trabalham, mas que encontram tempo para fazer.
A história também é sobre este poder que está nas mãos duma mulher que faz; esta, tricotando, apresentou a liberdade a quem nem sequer sabia o que isso era.
Nas páginas do livro que tem afinal tão poucas cores e em que o país do sol está tão cinzento (pois, é de madrugada...), a Primavera da mãe que tricota, baralha o sistema e liberta visão e cabeça, que é o que é preciso para mudar. E está tão na ordem do dia.
Nas páginas do livro que tem afinal tão poucas cores e em que o país do sol está tão cinzento (pois, é de madrugada...), a Primavera da mãe que tricota, baralha o sistema e liberta visão e cabeça, que é o que é preciso para mudar. E está tão na ordem do dia.
Um destes dias o B viu uma coisa feita por mim e perguntou, mas afinal quando é que mãe faz isto? E eu senti-me uma grande senhora, (como a minha mãe e a minha sogra), uma super-mulher aos olhos do meu primogénito, com super-poderes-mágicos de fazer aparecer e de tricotar o tempo.
Afinal, a noite ainda é uma criança.
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Com três novelos Planeta Tangerina, 2015
Henriqueta Cristina texto, Yara Kono ilustrações
isbn 9789898145659
:)
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