A paleta de cores deste livro foi o que primeiro me chamou a atenção.
Não são as cores suaves dos álbuns clássicos para a infância, as vivas do boom da literatura infantil do início do século XXI, as fluorescentes dos contemporâneos ou a paleta reduzida dos álbuns mais experimentais.
São cores desmaiadas, dessaturadas, arriscadas. Neste dia nublado, as fotografias tornam a t-shirt um pouco mais fluorescente do que realmente é. Ou talvez seja a esperança infantil da personagem a fazer vibrar a tinta na página de papel.
Talvez o desmaio das cores dest'A colher sirva para sublinhar uma espécie de morte-lenta que atravessa toda esta história. Uma dupla morte-leta, diria: a provocada pela guerra — através da destruição, da migração e da perda;
e a provocada pelos adultos nas crianças — através das proibições, das regras e das convenções.
A morte da memória e morte da imaginação.
Não venho defender o bom selvagem. Uma boa educação é fundamental. As regras dão estrutura e segurança às crianças. E algumas convenções são fundamentais para a vida em sociedade.
Mas é sempre bom refletir, em cada nova fase, o que é mesmo importante balizar ou deixar fluir. Uma colher é uma colher. E pode ser uma relíquia. Mas também pode ser uma pá ou uma baqueta ou que a imaginação nos mostrar. Quantas colheres temos aprisionadas nas nossas gavetas?
(Acho mesmo que vou levar uma destas ilustrações aos meus alunos mais novos para encontrarem nela os "erros" de perspetiva e as maravilhas plásticas desses mesmos "erros".)
A colher não é uma história triste. É um lamento, sim. Mas trespassado de uma teimosia por um presente mais livre e feliz.
E, ao mesmo tempo deixa no ar uma alternativa de futuro — de que precisamos como pão para a boca.
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Fábula, 2024
Sandra Siemens texto, Bea Lozano ilustrações
isbn 9789897877247